Contos de Arnária - A Espada Bruta (Parte III)


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                Já era tarde quando Eleodora acordou com a luz do Sol batendo em seu rosto. Ao ir para a cozinha não encontrou seu pai como de costume, e de lá se direcionou para o quarto dele. Ele estava deitado em sua cama. A mesma luz do Sol que era refratada e criava os diversos matizes do arco-íris dentro do copo, que estava em cima do criado mudo, iluminada sua face pálida. Ao constatar que ele ainda dormia, Eleodora colocou a mão sobre sua testa e viu que eles febril. Decidiu que ficaria em casa hoje, não iria para a metrópole, cuidaria de seu pai. Essa foi a mentira usada para enganar seus próprios sentimentos. Eleodora não queria ver os comboios do exército tebliano deixando a metrópole e se direcionando para o campo de batalha em Dandreas, pois ver aquilo lhe daria certeza de que não veria Aldaim por muito e muito tempo, isso se chegasse a vê-lo novamente. Esse era o pensamento que ela mais evitava ter, ele havia prometido que voltaria, e, junto dela, migraria para Sórin, a capital do Império Sóriano, a cidade eterna, o centro de todas as atividades de Arnária. Lá ela aprenderia coisas que ainda não sabia sobre a esgrima, pois, embora a Academia de Espadachins Arnariana Central fosse a melhor entre todas as escolas de esgrima, ela precisava aprender outras visões da própria arte espadachim. Enquanto isso, seu melhor amigo realizaria seu sonho: estudaria artes cênicas e música na Academia de Expressões Artísticas e se tornaria um famoso bardo. Ele a acompanharia em suas missões heróicas e as transformaria em épicos, que posteriormente ser tornariam lenda, assim como a quem as escreveu. Essa visão do futuro lhe dava esperança, pois os deuses não seriam cruéis ao ponto de destruir os sonhos de um jovem tão talentoso por causa da ambição de homens tolos.
                Enquanto fazia o almoço, não conseguia parar de pensar em como seu amigo se sairia. Ao seu entender, ele estaria no pelotão que marcharia pela planície e investiria contra os muros de Dandreas. E ela sempre ouvira lendas sobre aquela muralha, alguns chegavam a chamá-la de A Imortal. A muralha jamais havia sido transposta desde a Guerra do Expurgo, quando os humanos conquistaram a cidade élfica. Desde então eles melhoraram muito toda a estrutura, engenharia e defesa da muralha, a tornando intransponível. Ela própria, que não era nenhuma perita em táticas de guerra, achava que era muita burrice atacá-los em seu ponto forte. Tentou de toda forma livrar-se desse pensamento e terminou o almoço. Nesse momento seu pai acabava de acordar e se direcionar à cozinha.
                O senhor Ransik Masdofa estava realmente pálido. Já havia muitos dias que ele se encontrava adoecido, porém sua aparência, embora debilitada, não lhe entregava uma grave doença. Nesse dia, porém, além de pálido, seu rosto carregava grandes olheiras e sua boca estava visivelmente seca. Agora Eleodora via uma gravidade realmente alta na doença de seu pai e ficara ainda mais preocupada. Ele caminhava muito lentamente em direção a mesa e, ao puxar a cadeira, ela percebeu que seus braços estavam fracos. Em nada parecia aquele homem forte e cheio de energia que cuidara dela por tantos anos. Sua preocupação aumentou ainda mais quando, enquanto almoçava, seu pai desmaiou sobre o prato de sopa quente. Depois de socorrê-lo, correu em direção ao sítio de Abildor, para pedir ajuda. Juntos levaram o debilitado senhor Masdofa para a metrópole, para encontrar um médico para ele. Infelizmente, não tinham dinheiro suficiente para pagar os melhores médicos, porém, após um tempo de procura, eles encontraram um médico que aceitou cuidar dele pela pequena quantia de dinheiro que ofereceram.
                - Ele realmente está muito doente, suspeito que seja a Febre de Carn. – disse o médico pesaroso.
                A Febre de Carn era uma doença que estava afetando uma quantidade considerável de pessoas no sudoeste de Arnária desde 1857 e não haviam ainda encontrado vacina. Nem mesmo os magos do Instituto de Biomágica de Sórin conseguiam curar todos os infectados pela doença, conseguiam apenas prolongar o período de vida das pessoas para que, dependendo da ação do próprio organismo da pessoa, a doença se dissipasse.
                Infelizmente, Eleodora não possuía condições de levar seu pai até Sórin para que recebesse o tratamento adequado. Cuidou de seu pai como médico lhe dissera, e fez com que ele possuísse o maior conforto possível em sua casa. Teve que assumir o papel de seu pai, cuidar do rancho e vender os produtos na metrópole. Como não podia deixar seu pai sozinho, Abildor levava e vendia os produtos dos Masdofa, e eles só precisavam pagar o necessário para cobrir as despesas do transporte. O dinheiro que ganhava era quase que integralmente destinado ao tratamento de seu pai.
                Porém, como Eleodora temia, os esforços não geraram muitos frutos. Passaram-se vinte dias desde que essa rotina se iniciara, até que o senhor Ransik quis ter uma conversa realmente séria com sua filha.
                - Minha filha, você já está grande o suficiente para saber que não terá como cuidar de mim. – Ransik disse à Eleodora quando ela se sentou a beira de sua cama.
                - Não fale assim pai, estamos nos esforçando tanto e...
                - Eleodora, minha filha, você estão se esforçando além de suas capacidades e eu agradeço por isso, mas este seu velho pai já está nas ultimas e não tem como ser curado. – sua voz fraca interrompeu a de Eleodora. Aquela revelação de uma verdade triste caiu sobre a jovem como um raio. – Não fique triste – emendou o senhor Masdofa ao ver o rosto triste de sua filha. – Quero que se lembre que sempre te amei, e que continuarei te amando mesmo após ter encontrado descanso e esteja em Shandol.
                Shandol era a ilha mística para onde iriam os heróis de Arnária após morrerem, enquanto as outras almas iriam para Pando, o mundo dos mortos, e lá teriam seu destino decidido pela eternidade. Ao ouvir seu pai falando tão claramente do Shandol, Eleodora ficou confusa. Seu pai sempre fora um mercador, e, após muitos anos, adquiriu sua própria terra com o dinheiro que guardou durante anos.
                - Acalme-se, minha menina. Percebo a interrogação e incredulidade em minha afirmação. Contarei-lhe agora uma história, história essa que, para nossa segurança, era um segredo partilhado apenas eu e sua mãe. A minha história.
                Eleodora pensou que fossem delírios de seu pai, causado pela febre. Conhecia bem aquele homem adoecido que estava deitado em sua frente. Seu porte físico, embora enfraquecido pela idade e saúde, ainda lembrava o rigoroso e atlético mercador que outrora havia migrado de Albaren para Teblas em busca de nova vida comercial. Sua pele morena e seus olhos verdes comprovavam sua origem. Não havia nada mais a acrescentar na história daquele homem forte e bondoso. Não havia aventuras a mais que um mercador pudesse ter em sua vida. Mesmo assim, Eleodora permitiu seu pai falar o que desejava.
                Ele lhe contou sobre quando entrou na academia militar de Albaren, contou sobre seus estudos de estratégias e combate armado. De seu ingresso no exército de Albaren, e de sua rápida galgada na hierarquia militar. Sobre quando foi transferido para se unir aos Imortais, grupo de combatentes de elite do exército de Albaren. Falou sobre os horrores da Guerra do Grande Lago, contra Sórin, e de como foi ferido em combate e levada por seu cavalo até os limites de Dandreas. Fora cuidado por uma jovem ruiva de pele doce como pêssego e de uma graça sem igual. Apaixonou-se perdidamente por aquela jovem. Contou sobre quando a vila era ameaçada por Algore, uma aranha gigante que habitava a Floresta dos Sonhos. Ele a enfrentou e, com muito esforço, conseguiu matá-la e libertar a vila. Foi então que tomou coragem, e pediu a mão da jovem que cuidou dele em casamento, e ela, que também se apaixonara por aquele forasteiro que aparecera de repente, aceitou de imediato. Foi então que se casaram. Mas naquele momento já se espalhara a noticia do Imortal que havia salvado a vila de Dandreas, e o jovem guerreiro recebeu duas cartas. A primeira era do Conselho de Miquéia, formado pelos mais valorosos heróis de Arnária, lhe consagrando o titulo de herói. A outra era de uma de suas irmãs, que assumira os negócios de seu pai. Ela lhe avisava que o exército de Albaren havia contratado membros da Skyrv para encontrá-lo. Ransik percebeu logo o perigo e partiu com sua nova esposa para Teblas, onde, junto de sua amada e o fruto de seu amor, viveria como um mercador pelo resto da vida.
                Eleodora ficou baqueada com a história que seu pai acabara de lhe contar. Sentia como se tivesse sido enganada por toda sua vida. Milhares de perguntas vieram à sua cabeça, mas não se atreveu a fazer nenhuma. O senho Masdofa, por sua vez, percebeu que a revelação havia afetado sua filha. Um breve sentimento de angústia por vê-la naquele estado o atingiu, mas ele sabia que ela devia saber a verdade sobre quem era seu pai. Ele então deu um sorriso pesaroso e disse:
                - A espada que você carrega em sua bainha e que lhe acompanhou em seu caminho até aqui, foi a mesma espada que me consagrou como imortal, e a mesma espada que salvou uma vila inteira de Dandreas. Esse é meu legado para você, minha querida filha. – Ao dizer isso, ele fechou levemente os olhos, e completou – Agora eu preciso dormir, filha.
                Eleodora saiu do quarto ainda com os olhos cheios de duvidas, mas decidiu não incomodar seu pai. Ela entendera seus motivos e achou que não tinha o direito de cobrar mais nada daquele homem cansado pelo tempo. Quando sua filha saiu, Ransik se entregou ao mundo dos sonhos. Lembrou de sua infância tranqüila e coberta de luxo que seu pai, um mercador, lhe proporcionara. Lembrou da juventude cheia de conflitos e triunfo na academia. De sua vida militar. O rosto da jovem Odara, sua falecida esposa, lhe dirigiu um sorriso. Um frio percorreu o corpo do homem. Lembrou da cerimônia que concedera à sua filha o titulo de Espadachim. Lembrou de cada sorriso da menina, desde a infância até a juventude. Um sorriso abriu em sua face ao ter em sua mente a imagem dos três brincando e sorrindo na frente da casa, há cerca de dez anos antes. “Adeus, minha querida Eleodora.”, ele pensou antes de se entregar ao seu último e mais real sonho.




                Sessenta dias se passaram e Eleodora ainda sentia falta da presença de seu pai em casa. Era solitário agora que apenas ela morava naquela construção. De vez em quando seus vizinho vinham visitá-la, o que a confortava um pouco. Mas uma coisa a fez enfrentar tudo o que aconteceu com menos dor do que esperava. A revelação de seu pai no dia de sua morte a fizera ver que ele sempre lutou por aquilo que amou e desejou. Mostrou também que ele não se arrependia de suas escolhas. Ele lhe ensinara a mais coisa mais importante aparece de surpresa na vida. E isso a fazia ver seu pai como um homem ainda mais brilhante do que ela já imaginava.
                Em certo dia Eleodora foi até a metrópole para comprar mantimentos. Lá ela ouviu rumores de que Teblas havia assinado um tratado de trégua com Dandreas, e os pelotões estavam retornando. Essa noticia fez seu coração saltar. Aldaim estava voltando depois de tanto tempo. Sem perder mais tempo, ela foi atrás de mais informações e confirmou que o boato da trégua era verdade, ainda mais, os pelotões chegariam à metrópole no dia seguinte. Ao voltar para casa, a ansiedade não deixou Eleodora descansar. Iria ver seu amigo novamente. Finalmente, havia esperando tanto por esse momento. Só Aldaim saberia confortá-la da falta que seu pai fazia. Somente Aldaim saberia como conversar com ela. Somente ele poderia fazer voltar a ter uma vida mais despreocupada novamente. Somente ele...
                O dia seguinte chegou e Eleodora acordou cedo. Conhecia Aldaim e sabia que o primeiro lugar para onde ele iria após sua chegada era para a casa dela. Limpou a casa e preparou um belo banquete, vestiu um lindo vestido e ajeitou os cabelos como de uma dama. Se sentiu meio boba fazendo aquilo. Afinal ele era seu amigo, sabia como ela se vestia e se portava. Então por que ela queria passar essa imagem diferente para ele? Era loucura. Estava querendo agira como uma dama para alguém que sabe que ela é uma guerreira? Decidiu não mais te questionar. Pela distancia que a metrópole ficava de sua casa e pelo horário em que era estimado que o exército fosse chegar da viagem, Eleodora calculou que Aldaim estava prestes a chegar. Foi para frente de sua casa. A porta dava vista para a estrada de terra e poderia ver quando ele estivesse chegando.
                Esperou horas e mais horas para ver Aldaim chegar. O dia estava ensolarado e o ar ameno. Era um dia gostoso de ser sentido do lado de fora da casa de Eleodora. Ela se sentia mais viva do que nunca. Seu coração palpitava rapidamente, sentia a barriga gelada e não conseguia para quieta em canto algum. Nunca sentira essa sensação fluir por seu corpo, e não esperava que fosse sentir justo agora, com a volta de um amigo. Mas ela entendia o porquê. Aldaim era a pessoa que a ajudaria a passar por uma fase difícil. Mas ela tinha uma sensação de que algo estava errado. Ele já deveria ter chegado a sua casa. “Não seja boba, o caminho é longo, e porque você está tão ansiosa?” falava constantemente a si própria. Quando o Sol já anunciava que o dia já havia passado da metade, Eleodora viu um vulto de um homem montado em um cavalo aparecer na estrada. A alegria tomou conta de seu coração. Estava preste a reencontrar seu amigo que voltava de um campo de batalha. Ele finalmente iria realizar seu sonho de abandonar a espada e estudar artes. Era um rapaz incrível que sempre a apoiara. Mas com a aproximação do homem a cavalo, Eleodora percebeu que não se tratava de Aldaim. Ela conhecia bem aquele cavalo, e não gostava muito de encontra-lo. Era o cavalo de Deisrel, seu outro companheiro de treino. Ela e Deisrel sempre tiveram uma relação conturbada, pois ele não a respeitava por ser mulher. Ele era um típico guerreiro tebliano, era um exímio espadachim, um ótimo estrategista e completamente machista. Eleodora odiava aquele rapaz. A estatura do homem que montava o cavalo confirmou que se tratava de Deisrel, mesmo embora parecesse com os ombros mais caídos e sua cabeça ligeiramente baixa. Uma ponta de desespero tomou conta do coração de Eleodora. “Por que Aldaim não veio? Será que se feriu e está no centro médico do exército? Preciso ir vê-lo urgentemente” sua voz ecoou em sua cabeça. Dirigiu-se até o portão para abri para o visitante inesperado. Ao chegar, Deisrel direcionou a ela um sorriso solidário (algo que jamais havia feito antes) e um olhar triste.
                - Eleodora, há quanto tempo...
                - O que veio fazer aqui, Deisrel?
                - Isso é jeito de tratar um velho amigo?
                - Pelo que me lembre, nunca fomos grandes amigos.
                - Porque eu era um idiota, mas isso passou. Preciso ter uma conversa séria com você, então posso entrar?
                Aquele encontro foi realmente inesperado para Eleodora, então permitiu a ele entrar. Dentro da casa, Deisrel sentou em uma cadeira e falou:
                - Tenho algo para lhe contar, mas seria bom que você sentasse primeiro...
                - Ainda achando que sou uma mulher frágil?
                - Não, isso é passado. Por favor, sente-se.
                Era evidente que em sua voz havia um tom de preocupação com Eleodora, uma preocupação sincera e não preconceituosa, como demonstrara durante o treinamento. Foi então que ela reparou bem em Deisrel. Ele carregava várias bandagens por todo o corpo, algumas ainda manchadas de sangue. Em seu rosto, um corte desenhava o formato do rosto desde o olho esquerdo até o queixo. Percebeu que seus cabelos estavam queimados. Ela se sentou a sua frente, e olhou para ele esperando que ele falass. Ele abaixou os olhos para a mesa por pouco tempo e depois voltou a encara-la .
                - Não sei ao certo como dizer isso, também não sei como vai reagir, mas, conhecendo você o pouco que conheço, é melhor dizer de uma vez... – Ele fez uma pequena pausa e respirou fundo e continuou. – Sinto muito Eleodora, mas Aldaim morreu durante a guerra.



Continua...
Contos de Arnária - A Espada Bruta (Parte III) Contos de Arnária - A Espada Bruta (Parte III) Reviewed by Lorhien on sábado, fevereiro 12, 2011 Rating: 5

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