Contos de Arnária - A Espada Bruta (Parte I)

Dia 72 do verão, o ciclo do Fogo, ano de 1859, metrópole de Teblas, Reino Teblas. Aquela era especial para os alunos da Academia de Espadachins Arnáriana Central. Todos os formandos daquele ano estavam buscando suas licenças. Para um dos alunos essa era muito mais significante do que para os outros. Eleodora Masdofa era a primeira mulher a obter a licença para a esgrima, isso fazia seu coração bater extremamente forte e rápido, e aumentava a cada vez que um nome era chamado. A cada nome chamado um aluno se levantava junto a uma salva de palmas. Ela sabia que seria deixada para ultima, afinal sempre fora descriminada na academia, só foi levada a sério quando foi adotada como pupila por Mendel, um dos melhores espadachins da historia e mesmo assim muitos diziam que Mendel só a havia acolhido como pupila por ser uma mulher atraente. Ela e seus dois companheiros de treino estavam ansiosos, os pupilos de Mendel seriam os últimos a serem chamados.
- Condecoramos Deisrel Rá com o titulo de espadachim – foi quando um dos companheiros de treino de Eleodora se levantou, olhou com certo desprezo para seus companheiros e foi em direção ao altar – Agora lhe entregamos o titulo de Deisrel Rá, ordem de Mendel, sexta classe.
Deisrel recebeu uma medalha e voltou ao seu lugar. O próximo seria Aldaim, o único companheiro de verdade que Eleodora tivera durante o treinamento, o único o qual a apoiou mesmo ela sendo uma mulher. Eleodora sentia um carinho muito especial por ele e, agora nessa formatura, se sentia orgulhosa de seu amigo ter conseguido se formar, pois ela se lembrava dos treinamentos, onde ela percebia que Aldaim não tinha muito talento para a esgrima e que ele preferia as lavouras e o cuidado com os animais. Ele havia seguido os desejos do pai até ali, um ex-soldado e latifundiário, que não queria que o filho passasse a vida toda no campo, queria que ele tivesse a glória dos heróis de Arnária, mas ele não se importava com os desejos do filho. Aldaim se levantou e deu uma piscadela e um sorriso para Eleodora, que retribui o sorriso. Ele então se encaminhou ao altar, em meio as palmas.
- Agora lhe entregamos o titulo de Aldaim Bastarel, ordem de Mendel, sexta classe.
Ao voltar ao seu lugar, Aldaim sussurrou aos ouvidos de Eleodora:
- Vai lá garota, você merece.
A ansiedade aumentou em seu peito, ela sabia que era o próximo nome a ser chamado. Parecia agora que o tempo havia congelado. O pequeno intervalo entre um nome e outro agora parecia ter se alongado para horas. Até que ouviu o anfitrião dizer a frase que ela tanto estava esperando.
- Condecoramos Eleodora Masdofa com o titulo de espadachim – quando ela se levantou não houve salva de palmas, não houveram ovações, nada que fizesse com que aquele momento fosse mágico. Pareceu um pesadelo ouvir as pessoas sussurrando coisas sobre ela, mandando-a largar a mão se tentar virar homem, que precisa apenas que alguém a domesticasse. As únicas duas palmas que ouvia batendo eram as de Aldaim e de seu mestre Mendel. Ao chegar ao altar para receber a medalha, ela pode ver um sorriso consolador em seu rosto. - Agora lhe entregamos o titulo de Eleodora Masdofa, ordem de Mendel, sexta classe.
Após receber a medalha, Eleodora começara a ouvir outra pessoa batendo palmas. Ao se vira viu, depois de todas as pessoas que estavam assistindo a condecoração, seu pai batendo palmas. Uma lagrima escorreu dos olhos dela. Seu pai estava gravemente doente, porém insistira para que ela entrasse na academia, mesmo sabendo que iria ficar sozinho, já que sua esposa havia morrido há oito anos. Eleodora não se importou com mais ninguém, aquela era a maior recompensa de toda sua vida. Ela sabia que ele a amava, jamais demonstrou qualquer remorso pelo fato de que a única herdeira de seu nome era uma mulher, coisa que qualquer homem de Teblas teria feito, nem tampouco a tinha forçado a agir como homem, ele sempre deixava claro que ela podia usar espadas, mas jamais devia se esquecer de que ainda era uma doce e meiga moça. Eleodora viveu por todo esse tempo assim, vivia como uma donzela enquanto não estivesse empunhando uma espada. Seu mestre diversas vezes falava que ela era como uma rosa, delicada, bela e frágil, mas sabia muito bem como se defender. Eleodora não esperou muito até correr em direção ao seu e abraçá-lo. Ela sabia que essa não era uma atitude de um formando da academia, mas não se importava com o que os outros pensavam e diziam, pois se isso a impedisse de fazer qualquer coisa, ela nem teria se formado. Quando abraçou seu pai ele afagou seus cabelos, e disse com uma voz muito emocionada:
- Pa-parabéns querida, estou muito orgulhoso de você. Sua mãe também está com certeza, de onde ela estiver.
- Obrigada pai... Embora eu ainda ache que a mamãe iria me matar se fosse viva quando eu entrei na academia.
Os deram risadas juntos. Eleodora esqueceu toda a cerimônia e foi junto com seu pai para casa. Antes de saírem, Aldaim os alcançou e se dirigiu ao pai de Eleodora:
- Senhor Masdofa, prazer em conhecê-lo, sou Aldaim, companheiro de treino de Eleodora.
- Pai, esse é aquele de quem eu te falava, que me ajudava nos treinos.
- Prazer senhor Aldaim.
- O senhor deve estar muito orgulhos de sua filha.
- Com certeza, é impossível não estar.
- Ela agora será um como um símbolo, não apenas em Teblas, mas em toda Arnária.
Isso era um fato inegável. Teblas possuía uma sociedade extremamente machista, e o fato de Eleodora saber lutar e ter adquirido o titulo de espadachim faria com que ela se tornasse um símbolo de uma força feminina. Embora já houvesse outras heroínas em Arnária, tais quais Asthri Satherlund, Mona Diez e Dalica Olho de Águia, era a primeira vez que uma mulher havia se tornado espadachins. Em geral, as mulheres que recebiam títulos, recebiam títulos de magas ou caçadoras, talvez até de membros da Skyrv, e ainda assim eram as poucas que ganhavam o titulo de heroína e Eleodora não queria ser apenas uma espadachim, ela queria ser mais do que uma arma do exercito. Seu sonho era se tornar a primeira heroína com o titulo de espadachim da história de Arnária e ser lembrada por todos durante gerações.
- De fato, mas agora eu estou muito cansado, Aldaim, se importaria se eu me retirar-se – disse o pai de Eleodora, com uma voz visivelmente fraca. – Apareça em casa para conversamos melhor outro dia.
- Sim, eu com certeza aparecerei – e virando-se para Eleodora – Te verei no baile essa noite?
- Como assim? Irá haver um baile? – disse o senhor Masdofa, surpreso.
- Sim pai, mas eu não irei. – Eleodora possuía certa dose de amargura em sua voz ao dizer isso.
- Por que não? – perguntou seu pai
- Não é o meu lugar.
- Minha filha, ouça: Você merece estar lá tanto quanto qualquer outro, ou até mais. Não se deixe derrotar pelo que os outros falam, eu sei você nunca foi assim.
- Seu pai tem razão Eleodora.
- Mas... Não é o meu lugar...
- Claro que é, Elê – disse Aldaim eu um tom que parecia bronca – você lutou mais do que qualquer um. Você se formou na academia mesmo sofrendo diversos preconceitos durante o caminho, merece curtir essa noite.
- Ta legal, vocês venceram. Vou levar meu pai até a nossa casa e em seguida vou me encontrar com você. Nos vemos lá. – dito isso, Eleodora e seu pai foram até os cavalos e partiram.
A casa deles era simples, porém muito aconchegante. Ficava em um rancho próximo a metrópole, onde o senhor Masdofa plantava alguns legumes para consumo próprio e cuidava de vacas leiteiras já velhas. Eleodora adorava aquele lugar, ainda mais por que sabia que seu pai não podia investir mais naquele rancho. A maior parte do dinheiro que ele tinha foi usada para pagar a estada dela na academia, e isso fazia com que sobrasse pouco para os cuidados do rancho. Ao chegar em casa, Eleodora deixou seus pertences em seu quarto e foi para a cozinha preparar o jantar.
- O que a senhorita pensa que está fazendo? – perguntou seu pai, com um tom de voz nervoso.
- Preparando nosso jantar ué...
- Como assim “nosso jantar”? Você esqueceu que vai ao seu baile de formatura?
- Pai, não começa vai... Ambos sabemos que eu só disse isso para me livrar de ficar ouvindo Aldaim me enchendo.
- Você vai a esse baile sim, mocinha. Você merece isso, se dê uma chance de ficar feliz um pouco.
- Ah claro, e eu vou a um baile cheio de rapazes, onde as únicas mulheres que tem são as mães, tias e noivas deles? E ainda por cima, não tenho uma roupa para ir para um baile pai... Esse meu uniforme de combate não condiz com o luxo de um baile.
Seu pai saiu da cozinha em direção ao quarto, e voltou com uma pequena arca luxuosa, de madeira de primeira adornada com ouro e safiras. Ele o abriu e mostrou para Eleodora. Em seu interior havia um vestido rosa, extremamente luxuoso, junto com uma tiara de prata cravejada de safiras.
- Sua mãe lhe fez esse vestido há alguns anos. Disse que quando você fosse mais moça deveria usar algo digno de sua beleza.
Eleodora olhou para aquele vestido, maravilhada. Ele era tão lindo que faziam suas vestes de batalha que estava usando parecerem apenas trapos feitos de couro. Era algo tão delicado que ela tinha medo de tocar e desmanchar.
- Pai, esse vestido não é para mim. É para moças delicadas e bonitas.
- Por isso que eu estou lhe entregando. Eleodora, você acha que se você não fosse delicada e bonita, você despertaria tanto rancor dos homens da academia? Homens estão acostumados a moças sem trejeitos femininos fazerem alguns serviços braçais, o fato de você não ser uma dessas moças é que te tornou tão especial.
De fato, agora Eleodora estava mesmo querendo ir ao baile, só para usar aquele vestido. Pegou-o e se dirigiu ao seu quarto para vesti-lo. Quase não entendeu quando seu pai disse que ia pedir a um amigo que a levasse ao baile, de tão absorta que estava com aquela sensação. Fazia tanto tempo que estava entre aqueles homens que, se não fosse pelas diferenças básicas, ela quase esqueceu que era uma bonita mulher. Antes de qualquer coisa, ela foi tomar um banho e assim que terminou foi direto para o vestido dentro da arca, deslizou-o pelo seu corpo e o ajeitou todo aquele tecido que estava sobre ela. Fez um penteado para que seu cabelo não ficasse voando com o vento e assumisse um tom mais solene. Colocou a tiara na cabeça, colocou os brincos de sua mãe, calçou as luvas e a sapatilha, e então foi em direção ao espelho. Quase não estava se reconhecendo. Toda aquela expressão dura de guerreira havia abandonado seu rosto, seus olhos verdes estavam bem visíveis sem seu cabelo fazendo sombra sobre eles. A tiara de prata contrastava com os cabelos avermelhado e suas duas únicas mechas que caiam enfrente as suas orelhas adornadas com brincos prateados. O vestido seguia a risca as curvas de seu corpo até a cintura, onde sua saia se expandia até cobrir seus pés.
Abildor, do rancho vizinho, estava conversando com o senhor Masdofa sobre algumas pragas que estavam atacando sua pequena horta. Quando Eleodora cruzou a porta e chegou à cozinha, ele não pode evitar o encanto que se acometeu sobre ele. Não estava mais vendo aquela menina que vivia no rancho antigamente, ou aquela garota vestida com trajes de proteção, que vinha para visitar o pai durante o período de academia. Estava vendo uma mulher que parecia uma princesa, uma boneca de porcelana feita por um dos mais habilidosos artesãos.
- Está muito bonita, pequena Eleodora.
- Obrigada senhor Abildor. – ela fez uma pequena reverencia segurando a barra de seu vestido – Se não for rude de minha parte, gostaria de partir nesse momento, pois o tempo que demoraremos a chegar à metrópole pode ser prolongado devido a algum imprevisto, e eu não gostaria de chegar muito mais atrasada.

Contos de Arnária - A Espada Bruta (Parte I) Contos de Arnária - A Espada Bruta (Parte I) Reviewed by Lorhien on quarta-feira, agosto 04, 2010 Rating: 5

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