Contos de Arnária - A Espada Bruta (Parte II)

A Espada Bruta (Parte I)
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             O baile estava agitado e belo. O salão também era algo espetacular. Uma área circular, iluminado por milhares de velas douradas que soltavam uma leve fumaça violeta, que se espalhava pelo ambiente, fazendo com que a luz serpenteasse por ela, como uma cobra luminosa. Os vitrais localizados dos extremos do salão eram divinos. Eles mostravam espadachins com suas espadas empunhadas, enfrentando diversas criaturas. Também havia alguns vitrais mostrando cavaleiros em seus cavalos enfrentando hordas de calistos, vampiros e outros monstros; outros mostravam cavaleiros da Ordem do Dragão montados em seus dragões sobrevoando e cuspindo fogo em exércitos inimigos, ou cavaleiros da Ordem Real montados em seus grifos duelando entre si. Mas, embora todos os vitrais fossem belos, o mais fabuloso era um localizado no extremo oposto à entrada do salão: um vitral de um Mestre da Forja, unindo as duas espadas irmãs, Geys e Tyos, em apenas uma, utilizando sua Quintessência. Ao olhar o vitral de determinado ângulo, viam-se as duas espadas encostadas uma à outra, mas de um ângulo diferente, apenas uma espada, claramente uma mescla de ambas, estava a mostra, em um espetacular sobrepor de pedaços de vidros, uma obra de arte que nem mesmo os melhores artistas de Sórin conseguiriam fazer igual.
Os jovens homens estavam conversando entre si sobre espadas e táticas de combate, enquanto suas noivas apenas falavam sobre seus afazeres domésticos e sobre os sonhos de um casamento estável com grandes membros do exercito tebliano. O baile de formatura se desenrolava com uma musica bastante arranjada e harmoniosa. Os sons dos violinos, dos cellos, dos banjos e das tubas entravam em uma incomum e extremamente bela harmonia, que trajava o ambiente de alegria com certos tons de tristeza. E assim era a formatura, estavam felizes por terminarem a academia de esgrima, mas estavam melancólicos pelo fim de seus tempos juntos. Alguns não seguiriam utilizando as espadas, indo atuar em partes administrativas do exercito, enquanto outros iriam diretamente à frente de batalha da guerra contra Dandreas. Devido a isso, os jovens homens utilizavam seus melhores e mais finos trajes para comemorar, e seus acompanhantes – tais como pais, mães e noivas – estavam utilizando trajes também à altura. Era difícil inclusive dizer qual das moças presente no recinto era a mais bela, todos os vestidos, penteados e jóias eram de perfeito contraste com suas donas.
                Porém a duvida de quem era a moça mais bela se esvaiu quando uma moça de vestidos rosa adentrou ao saguão. Uma tiara prateada, cravejada com safiras, estava colocada suavemente sobre seus cabelos presos, deixando apenas duas madeixas caírem ao lado de seu rosto. Para Aldaim, sem sombra de duvidas, Eleodora era a moça mais bela daquele baile.
                Eleodora, como todo o esplendor de uma princesa, estava carregando em sua cintura sua espada. A espada, com sua empunhadura verde esmeralda e a lâmina guardada em uma bainha branca com detalhes em tons quase imperceptíveis de azul, não banalizava o belo traje feminino. Pelo contrario, conseguia trazer ainda mais graça ao traje, como um acessório de luxo.
                Fosse pela admiração, fosse pelo desprezo, todos os olhares daquele salão se voltaram para Eleodora quando entrou no salão. Aldaim ficou com um tempo paralisado diante do esplendo que sua emanava. Assim que saiu do breve transe, andou em direção a ela.
                - Viu só, eu vim... – disse Eleodora, com um tom zombeteiro na voz, à aproximação do amigo. Após um tempo quieto, Aldaim sorriu e respondeu:
                - Você está linda – Ela agradeceu com um sorriso sem graça.
                Um breve e raríssimo momento de constrangimento surgiu entre os dois, que sempre se sentiam à vontade um com o outro, e amos não entendiam ao certo o porquê que isso aconteceu.
                - Nós vamos ficar aqui parados, ou vamos aproveitar o baile? – disse Eleodora, quebrando o momento constrangimento.
                Aldaim seu uma risada discreta, então segurou o braço de sua amiga e a levou para o centro do salão, onde estava concentrada a festa e lá iniciaram uma dança seguindo a musica.
                A noite estava perfeita, até que certos murmúrios indignados e furiosos. Então uma voz se elevou:
                - Essa aberração devia voltar a cuidar da casa. Sei bem como ela conseguiu tirar a licença de esgrima. – a frase vinha de Arteriz, que era considerado o aluno numero um da academia.
                Eleodora logo percebeu que aquela frase era com ela. Aldaim falou para ela se conter, e por certo tempo, mas Arteriz continuou com seus comentários e em pouco tempo Eleodora perdeu a paciência, parou de dançar e olhou em direção a ele e retrucou seus comentários.
                - Está com tanto medo assim de quem uma mulher possa te vencer?
                - Rá! Essa é boa! Uma mulher me vencer na esgrima! A única lamina que mulher sabe guiar é a faca com a qual ela deve preparar as refeições de seu homem.
                - Se tem tanta certeza assim, por que não me desafia para um Duelo de Teblas?
                - Não seria justo com você minha cara, você não estará em sua área e nem eu estou a fim de te desafiar para um duelo de quem lava roupa mais rápido.
                - Então se é assim, eu te desafio para um Duelo de Honra
                - Ei Eleodora, calma lá – interveio Aldaim – Você não vai querer lutar justo hoje e justo com ele?
                - Qual é o seu problema Aldaim? Também não acredita que eu possa vencê-lo?
                - Claro que não, ele tem bom senso. – zombou Arteriz.
                - Então vamos lá, é só deixar eu me preparar que eu te enfrente hoje mesmo.
                - Se você quer ser humilhada em publico está ótimo, daqui uma hora na arena da academia.
                - Irei vestir roupas apropriadas para o combate e te encontro lá. – ao dizer isso Eleodora se virou e foi em direção ao vestiário.

                Alguns minutos depois, Aldaim foi até o vestiário onde Eleodora se preparava e, antes de entrar, perguntou:
                -Já está pronta?
                - Quase.
                - Sabe Eleodora, não acho uma boa idéia você enfrentar Arteriz. – em sua voz podia-se perceber um receio fraternal, de alguém que está realmente preocupado com a outra pessoa.
                A resposta de Eleodora foi um breve e sistemático silencio de alguém que acaba de se decepcionar com algo, seguido do som da maçaneta da porta do vestiário.
                Ao aparecer na porta, agora aberta, Eleodora trajava seu clássico uniforme de combate: um corpete de couro tingido de vermelho, que possuía detalhes pretos; uma calça preta bem justa, feita com um material elástico, que cobria suas coxas, deixando de fora o joelho e as canelas, e, pouco abaixo do joelho, se estendia uma bota preta; suas mãos eram protegidas por manoplas pretas, feitas de couro, que permitiam o livre movimento do punho. Quatro pequenas placas, com dimensões exatas de suas pernas, protegiam as canelas e as coxas. Seu cabelo avermelhado estava todo preso em um coque, preso por um palito de cabelo metálico dourado com um pingente em forma de chama na sua ponta. No geral, as vestes de Eleodora visivelmente a deixava se movimentar com mais liberdade e também tornava suas formas femininas mais aparentes. Com um olhar visivelmente irritado, ela fitava Aldaim.

                - Então você é outro que acha que não posso vencê-lo – sua voz possuía um tom inquisidor.
                - Ora, convenhamos Eleodora, Arteriz é considerado o aluno prodígio da academia, nunca perdeu nenhum duelo que tenha participado. Sabemos que você é uma ótima esgrimista, mas...
                - E por que não posso vencê-lo – ela interrompeu claramente nervosa – não é só porque sou mulher que não posso vencer um duelo.
                - Não foi isso que eu disse...
                - Então fique com esse pensamento, eu vou para a arena, tenho um duelo para vencer – disse, encerrando a discussão e se direcionando para a arena da academia.

                Aldaim ficou confuso. Parte dele ficou com raiva de Eleodora ter falado que ele, logo ele, tivesse aquele tipo de pensamento. Outra parte entendia o que ela estava passando, e queria ajudá-la de alguma forma. Uma terceira parte temia pelo ego de sua amiga, e o que aconteceria com ela se perdesse aquele duelo, na frente de todos. A única coisa que podia fazer era dar seu apoio a ela, coisa que ele não havia feito.

                Todos que estavam presentes ao baile se direcionaram à arena, o que fez com que ela ficasse ligeiramente cheia, embora não chegasse em sua capacidade máxima. A arquibancada era circular feita de arenito trabalhado, da mesma forma que os muros de proteção que as elevavam, que possuía entalhes de mitos heróis e mitos teblianos. A arena era feita de terra batida e possuía um formato elíptico, ostentando em cada um dos extremos (entalhado nos muros) o escudo do reino de Teblas, e o mesmo escudo estava pintado no centro da arena. Tochas circundavam toda a extensão da arena, iluminado-a. Arteriz estava em um dos extremos. Estava trajando o mesmo traje que estava no baile, havia apenas tirado o smoking e aberto as mangas da camisa. A bainha da espada estava presa à cintura. A bainha era folheada a prata, com várias pedras preciosas e o escudo da família, feito em bronze, incrustado nela. A empunhadura da espada era dourada, com um rubi reluzindo em sua ponta.
                Eleodora apareceu algum, tempo depois, pelo outro lado da arena. Risadas seguiram seu surgimento. Um ancião foi até o centro e começou um discurso sobre a esgrima. Depois de alguns minutos ele explicou as regras do Duelo de Teblas: quem for ferido ou perder sua arma durante o duelo está automaticamente derrotado. Arteriz lançou um sorriso cínico para Eleodora, que o ignorou, se concentrando no duelo.
                - Quando o fogo verde brilhar, vocês devem iniciar o Duelo de Teblas – Disse o ancião, se afastando-se do centro da arena e indo em direção a uma pequena ânfora localizada fora dela. Pegou uma tocha e ascendeu um pavio que se direciona para dentro da ânfora. Devido a tensão do momento, Aldaim, que estava agora na arquibancada, via a chama do pavio caminha lentamente, como uma lesma em um terreno arenoso, até o centro da ânfora, onde se encontraria com um pó esmeraldino. Quando a chama atingiu o pó, um brilho esverdeado, como o de uma explosão, surgiu e rapidamente o pós estava em combustão, liberando uma chama verde.
                Quando o brilho se deu, Arteriz correu em direção a Eleodora, que o ficou aguardando. Ele tirou sua espada da bainha e a lâmina prateada refletiu a luz das tochas. Eleodora também desembainhou sua espada, mostrando sua lâmina azulada. Durante a corrida, Arteriz arqueou o braço, fazendo a lamina ficar próxima a altura da cabeça. Eleodora reconheceu aquela posição, era a posição de transporte de duelo a distancia para duelo corpo-a-corpo, estava presente no primeiro manual da academia. O mesmo manual ensinava come se devia defender aquele ataque, e Eleodora sabia muito bem como era o movimento. Enquanto Arteriz se aproximava (o que estava ocorrendo em um intervalo de tempo muito pequeno), ela imaginava como o combate se seguiria após a primeira estocada de seu adversário. Quando ele chegou a uma distância onde se iniciaria o combate, Eleodora já sabia exatamente o que fazer. A estocada de Arteriz teria sido perfeita, se não fosse pela agilidade de Eleodora. Poucos dos presentes conseguiram acompanhar com os olhos o que houve naquele momento. Eleodora moveu seu corpo para a esquerda, esquivando do golpe. Foi com a empunhadura da espada que ela atacou o punho do adversário, em uma velocidade surpreendente; esse golpe abriu um leve corte no punho de Arteriz e o fez abrir a mão por uma fração de segundos, fração suficiente para que Eleodora atacasse seu braço com o joelho, desviando sua mão da espada que agora pairava em pleno ar. Ela rapidamente movimentou sua mão esquerda e agarrou a espada de Arteriz e girou o corpo em direção ao seu adversário, colocando a ponta da lâmina da espada no pescoço de seu dono, fazendo um ferimento leve nessa movimentação. Os olhos assustados de Arteriz fitavam Eleodora, que agora lhe direcionava o mesmo sorriso cínico do qual havia sido alvo a momentos atrás.
                Toda a platéia ficou estupefata quando viu a cena de Eleodora rendendo Arteriz, e o silencio dominou toda a arena até o momento em que um apito surgiu no ar. Ao ouvir esse som, Eleodora jogou a espada de Arteriz ao chão e embainhou a sua própria, aguardando o ancião que se direcionava ao centro da arena novamente. Com um berro, o ancião anunciou:
                - A vencedora do Duelo de Teblas é Eleodora, Ordem de Mendel, Sexta Classe!
                Ainda assim, o silencio prevaleceu na arquibancada, exceto por alguns murmúrios indignados. Aldaim desceu correndo para arena, para cumprimentar sua amiga.
                Arteriz ainda estava olhando para ela, confuso com o que tinha acontecido, querendo entender o ocorrido:
                - Mas como?! – seus olhos mostravam o desespero de não entender porque tinha perdido – Eu nunca perdi um duelo antes. Por que eu perdi justamente para uma mulher?!
                - Eu não sou um manual, Arteriz. – a resposta calma de Eleodora o deixou ligeiramente mais confuso do que antes – Você me enfrentou em cima da arrogância, achando que eu não poderia levar um duelo com você justamente por eu ser mulher. Lamento lhe informar, mas hoje eu entendi por que você realmente não perdeu nenhum duelo. Você luta como um manual, assim como a maioria dos formandos daqui. Quando vocês levam movimentos presentes nos manuais de esgrima, aquele que improvisar primeiro vence. Infelizmente para você, você nunca aprendeu a improvisar logo no inicio de uma luta, apenas quando seu adversário já está absorto no combate.
                As expressões de interrogação e desespero deram lugar a uma face de muita raiva, de alguém que acabara de ser ofendido e humilhado em publico. Ele caminhou rapidamente para sua espada, a pegou e se direcionou à saída da arena.
Eleodora viu seu Aldaim correndo em sua direção. Ela retribui o gesto, também indo na direção dele. A chegarem perto um do outro se abraçaram, envoltos em uma enorme euforia.
- Você foi simplesmente fantástica! – Aldaim disse ao soltar-se dos braços da amiga.
- Eu disse que podia vencer! – Eleodora respondeu com um enorme sorriso no rosto.
- Nunca mais duvido de você. – ele estava admirado pela expressão de sua amiga. Nunca a tinha visto tão feliz assim em sua vida, e aquilo encheu seu peito de orgulho. Mas sua felicidade se esvaiu, e sua face se perdeu em olhar absorto da realidade.
- O que houve Aldaim? – ela havia percebido que algo o estava afligindo.
Aldaim ficou quieto por um momento, não sabia ao certo como dar aquela noticia. Por fim, achou melhor dizer tudo de uma vez sem fazer rodeios.
- A verdadeira razão de eu ter insistindo para você vir aqui hoje é que eu queria me despedir.
- Como assim se despedir?! – o espanto de Eleodora foi inegável, e ele sabia que não se fosse algo tão sério, sua amiga não o perdoaria por não ter lhe falado antes.
- Fui convocado pelo exército de Teblas para fazer parte do pelotão que irá atacar Dandreas por terra. Partiremos amanhã.
- Mas como?! Por que chamaram justo você?! – o desespero de Eleodora agora era realmente visível.
- Você sabe que meu pai é General do exército de Teblas e sempre quis que virasse militar. Ele mexeu os pauzinhos e me colocou nesse combate, que trará muitas glórias para mim e me fará galgar mais rapidamente a uma posição de destaque no exército.
- Mas Aldaim, e seus sonhos? Você deixará de escrever seus épicos e compor canções sobre aventuras fantásticas?
- Não tive escolha. Quando decidi dizer ao meu pai que não seria o orgulho que ele queria, eu recebi a convocação para o exército. Agora tenho que ir, se recusar serei acusado de deserção, que em Teblas é punível com a morte.
- Mos você não pode ir... – a tristeza de Eledoroa ao ver que não podia fazer nada pelo seu amigo a tomou completamente e, pela primeira vez desde a morte de sua mãe, lágrimas saíram de seus olhos.
- Não se preocupe, eu voltarei. Sobreviverei e voltarei, então abandonarei tudo e irei para Sórin, estudar música na academia de expressões artísticas. Meu primeiro épico inclusive será sobre a aventura da primeira heroína espadachim de Arnária. – embora estivesse sorrindo, Aldaim estava realmente ferido por dentro por ver sua amiga chorando em sua frente.
- Promete? – soou como um sussurro, mas era um grito de desespero da alma de Eleodora.
- Prometo. – Aldaim, assim como Eleodora, sussurrou o mais profundo desejo de sua alma.
Eles se abraçaram e ficaram ali, se despedindo um do outro, por incontáveis minutos que passaram muito mais rápido do que eles queriam. Não perceberam a arena esvaziar e a chama verde se apagar. Não perceberam as estrelas surgirem cada vez mais e mais no céu e a Lua assumir o topo daquela abóbada da noite. Ficaram ali, se despedindo dos únicos amigos que sempre acreditaram em seus sonhos.

Contos de Arnária - A Espada Bruta (Parte II) Contos de Arnária - A Espada Bruta (Parte II) Reviewed by Lorhien on sexta-feira, outubro 29, 2010 Rating: 5

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